A recente divulgação do Evangelho de Judas está abalando o mundo acadêmico. O documento de 1,7 mil anos apresenta uma nova versão do apóstolo acusado de trair Jesus de Nazaré e, ao mesmo tempo revela outras possibilidades de leitura sobre as vertentes místicas do cristianismo.
Os pergaminhos foram encontrados no Egito e apontam para a necessidade de um revisionismo da história do cristianismo e da sua figura mais odiada: Judas Iscariotes.
Judas nos aparece como uma personagem construída pelo imaginário popular tendo sua verdadeira origem sido apagada pelas mãos dos cristãos mais ortodoxos Hoje ele é visto não apenas como aquele que vendeu o seu próprio mestre por 30 talentos, mas também como exemplo de alguém traidor, ganancioso e que comete outro crime ao final da vida, o suicídio em função do remorso sentido.
O filme Paixão de Cristo, dirigido por Mel Gibson explora esta visão do apóstolo e insufla os sentimentos anti-semitas, que tantos conflitos já alimentaram.
Numa análise dos contextos locais percebemos que a nossa cultura precisa da figura do Judas, não a recém divulgada pela descoberta do evangelho apócrifo, mas daquela criada ao longo da história cristã. O palco para esta análise foi o bairro das Rocas, zona leste de Natal.
Na época da Semana Santa nos deslocamos pelas ruas da comunidade para realizar uma observação do ritual da malhação do Judas. Conversando com os moradores locais coletamos diversos depoimentos nos quais, o boneco enforcado no poste e pronto para ser malhado não correspondia à figura presente nos textos bíblicos.
O boneco do Judas assume as mais diversas representações e quase sempre estas revelam um tom de crítica social e, alguns sinais de clivagem e de disputa dentro do próprio bairro. -
Os mais antigos afirmam que a confecção do Judas era uma espécie de punição pela traição do discípulo e que a sua imolação no romper do sábado de aleluia significava a vitória do Cristo sobre a morte e sobre todo o mal.
Entretanto, atualmente apenas os mais velhos possuem esta visão em torno da malhação do Judas. Para os jovens do bairro das Rocas, o que prevalece é a brincadeira violenta e muitas vezes as disputas pêlos bonecos das ruas vizinhas, logo, de outros grupos de convívio, reforçando o caráter de rivalidade existente na comunidade.
A malhação do Judas envolve todas as idades e ao mesmo tempo . provoca sentimentos diferentes nas pessoas que interagem.com o rito. Entretanto, o que todos esperam é que o boneco seja malhado numa espécie de catarse coletiva.
Voltando ao achado histórico, o Evangelho de Judas reabilita o discípulo como o único que entendeu a mensagem de Jesus e o libertou da prisão da carne, contribuindo desta forma para que Cristo cumprisse com seu papel.
Porém, mesmo que ocorra esta assimilação por parte do credo cristão, a cultura popular vai continuar confeccionando os seus bonecos de Judas, pelo fato dos mesmos terem um significado além daquele pregado nos evangelhos bíblicos.
O valor que o Judas tem na comunidade das Rocas pode jamais ser alterado pela história e, o seu sentido deve permanecer ligado às necessidades de expressão e de escape de uma realidade social construída e ao mesmo tempo renovada, como o próprio rito da malhação, como a própria figura do apóstolo Judas Iscariotes.
Artigo publicado no Jornal de Hoje em: 30 de junho de 2006.
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