domingo, 30 de setembro de 2007

O valor que o Judas tem



A recente divulgação do Evangelho de Judas está abalando o mundo acadêmico. O documento de 1,7 mil anos apresenta uma nova versão do apóstolo acusado de trair Jesus de Nazaré e, ao mesmo tempo re­vela outras possibilidades de leitura sobre as vertentes místicas do cristianismo.
Os pergaminhos foram encontrados no Egito e apontam para a ne­cessidade de um revisionismo da história do cristianismo e da sua fi­gura mais odiada: Judas Iscariotes.
Judas nos aparece como uma personagem construída pelo imaginá­rio popular tendo sua verdadeira origem sido apagada pelas mãos dos cristãos mais ortodoxos Hoje ele é visto não apenas como aquele que vendeu o seu próprio mestre por 30 talentos, mas também como exemplo de alguém traidor, ganancioso e que comete outro crime ao final da vida, o suicídio em função do remorso sentido.
O filme Paixão de Cristo, dirigido por Mel Gibson explora esta visão do apóstolo e insufla os sentimentos anti-semitas, que tantos conflitos já alimentaram.
Numa análise dos contextos locais percebemos que a nossa cultura precisa da figura do Judas, não a recém divulgada pela descoberta do evangelho apócrifo, mas daquela criada ao longo da história cristã. O palco para esta análise foi o bairro das Rocas, zona leste de Natal.
Na época da Semana Santa nos deslocamos pelas ruas da comunida­de para realizar uma observação do ritual da malhação do Judas. Conversando com os moradores locais coletamos diversos depoi­mentos nos quais, o boneco enforcado no poste e pronto para ser ma­lhado não correspondia à figura presente nos textos bíblicos.
O boneco do Judas assume as mais diversas representações e quase sempre estas revelam um tom de crítica social e, alguns sinais de cli­vagem e de disputa dentro do próprio bairro. -
Os mais antigos afirmam que a confecção do Judas era uma espécie de punição pela traição do discípulo e que a sua imolação no romper do sábado de aleluia significava a vitória do Cristo sobre a morte e sobre todo o mal.
Entretanto, atualmente apenas os mais velhos possuem esta visão em torno da malhação do Judas. Para os jovens do bairro das Rocas, o que prevalece é a brincadeira violenta e muitas vezes as disputas pêlos bonecos das ruas vizinhas, logo, de outros grupos de convívio, refor­çando o caráter de rivalidade existente na comunidade.
A malhação do Judas envolve todas as idades e ao mesmo tempo . provoca sentimentos diferentes nas pessoas que interagem.com o rito. Entretanto, o que todos esperam é que o boneco seja malhado numa espécie de catarse coletiva.
Voltando ao achado histórico, o Evangelho de Judas reabilita o dis­cípulo como o único que entendeu a mensagem de Jesus e o libertou da prisão da carne, contribuindo desta forma para que Cristo cumpris­se com seu papel.
Porém, mesmo que ocorra esta assimilação por parte do credo cris­tão, a cultura popular vai continuar confeccionando os seus bonecos de Judas, pelo fato dos mesmos terem um significado além daquele pregado nos evangelhos bíblicos.
O valor que o Judas tem na comunidade das Rocas pode jamais ser alterado pela história e, o seu sentido deve permanecer ligado às ne­cessidades de expressão e de escape de uma realidade social construí­da e ao mesmo tempo renovada, como o próprio rito da malhação, como a própria figura do apóstolo Judas Iscariotes.
Artigo publicado no Jornal de Hoje em: 30 de junho de 2006.

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