No plano do imaginário cristão, ninguém representa melhor o estereótipo do traidor do que a figura de Judas Iscariotes. Segundo os textos dos evangelhos canônicos, Judas Iscariotes foi o discípulo responsável pela denúncia, prisão e consequentemente execução pública de Jesus de Nazaré. O apóstolo teria traído o seu mestre, recebendo por sua delação a quantia referente a trinta siclos, valor equivalente ao preço de um escravo. Com a prisão do nazareno, Judas teria dado provas de seu arrependimento e devolvido o dinheiro recebido das mãos dos sacerdotes judeus, cometendo suicídio, logo em seguida.
Após quase dois mil anos, a memória deste fato permanece viva na cultura popular, sendo a representação do apóstolo trazida para os festejos católicos da Semana Santa. Personagem marginalizada e banida da história cristã, anualmente tem o seu drama encenado durante a véspera da Páscoa, no rito conhecido por “Malhação do Judas” ou “Queimação do Judas”, dependendo da região na qual é realizado.
O ritual da Malhação do Judas tem origens em nosso país ainda no período colonial de nossa história, como atestaram os pesquisadores da cultura popular Luis da Câmara Cascudo e Ático Vilas-Boas Mota. Entretanto, o que nos chama atenção é que após quase cinco séculos a malhação permanece como um evento capaz de congregar crianças, jovens e adultos, principalmente do sexo masculino, para a reunião de materiais, confecção de um boneco representando o Judas e finalizando o rito com a aplicação da punição ao apóstolo traidor.
Ainda no âmbito da cultura popular, o estado do Rio Grande do Norte possui mais uma expressão artística que tem Judas como figura central de suas apresentações, o grupo Caboclos Malhação de Judas do município de Major Sales, oeste do estado. A brincadeira, assim chamada pelos seus participantes, acontece durante os festejos da Semana Santa e segue a estrutura comum do rito: confecção do boneco, punição e dilaceração ou queimação do Judas. O grupo tem uma formação com doze ou dezesseis dançarinos que encenam seus passos a partir da batida da zabumba, do toque do pandeiro e da sanfona e triângulo. Enquanto dançam, o boneco de Judas, feito geralmente de palha de bananeira e panos, é pisoteado, recebendo golpes com os bastões que os brincantes carregam consigo. Um aspecto bastante interessante destes grupos é o uso da máscara de pano pelos dançarinos e as roupas feitas a partir de trapos de pano e a presença do bastão, confeccionado a partir da madeira da gameleira. Esta informação foi inserida neste artigo para enfatizar o caráter de permanência do rito em terras potiguares.
Neste artigo, pretendemos discutir a presença do ritual da malhação do Judas em espaços sociais diferenciados: o campo e a cidade; como também apresentar as diferentes leituras que são feitas da personagem que é imolada durante o ritual.
A Malhação do Judas foi objeto de nossa observação em duas áreas bem distintas: Município de Venha Ver (oeste do RN) e o Bairro das Rocas (zona leste da cidade de Natal). No ano de 2005 pudemos acompanhar os festejos da Semana Santa na cidade de Venha Ver e observamos dois grupos de malhadores de Judas: um grupo no centro da cidade e outro numa área mais afastada.
Na manhã do Sábado de Aleluia, nos deparamos com o primeiro cortejo de malhadores de Judas. Este primeiro grupo era composto por adolescentes do sexo masculino com idades entre 08 aos 14 anos. Traziam uma figura confeccionada a partir da cabeça de uma boneca sobre um corpo cosido em uma manta velha. O boneco encontrava-se instalado sobre um jumento. Dois aspectos nos chamaram atenção. Primeiro, a representação do Judas havia sido composta como uma personagem feminina; segundo, todos os membros deste grupo de malhadores portavam máscaras de papel, ou tecidos sobre o rosto, usavam roupas femininas e disfarçavam a voz evitando qualquer reconhecimento.
O grupo seguinte portava um boneco com a cabeça feita a partir de uma lata cilíndrica de óleo de cozinha, utilizando um boné e óculos escuros. O Judas (com vestimentas masculinas) encontrava-se assentado sobre um jumento e seu corpo havia sido preenchido com folhas secas. Ambos os grupos de malhadores pediram ‘esmolinha’ para malhar o Judas e por essa razão, traziam uma lata ou cabaça para coletar o dinheiro que seria utilizado na malhação. A hora anunciada para malhar o Judas foi a meia-noite do Sábado de Aleluia, entretanto, os lugares não nos foram revelados.
Enquanto a malhação do Judas caracterizava-se como um momento lúdico para as crianças e adolescentes em Venha Ver, a passagem do boneco também motivava sentimentos piedosos nos mais velhos. Como exemplo, observamos a pressa de uma senhora (com aproximadamente 65 anos de idade), em cobrir com panos os ícones religiosos que tinha em sua casa. Quando perguntada sobre o seu gesto, a mesma nos informou que precisava proteger o “Senhor Jesus Cristo” da visão de seu traidor: o apóstolo Judas Iscariotes.
Numa análise antropológica do ritual, podemos definir a malhação do Judas quanto um rito liminar e de caráter punitivo. O grupo social assume a tarefa de castigar o boneco do Judas utilizando-se de várias interpretações para justificar esta ação. Segundo Arnold Van Gennep: “As crenças religiosas expressam a consciência que a sociedade tem de si mesma, a estrutura social é creditada com poderes punitivos que a mantém existente”.
No ano de 2006 deslocamos nossa observação do rito da Malhação do Judas para um novo campo: O Bairro das Rocas. Este bairro partilha de uma identidade festiva muito conhecida, sendo o lócus de agremiações de carnaval, arraiais de quadrilhas juninas e de uma sociedade para danças folclóricas desaparecidas e semi-desaparecidas.
O ritual da Malhação do Judas, ainda mais forte nas cidades do interior, perdeu força na capital do Estado, o que Luis da Câmara Cascudo já havia apontado no ano de 1979. Entretanto, o Bairro das Rocas continua a produzir os seus bonecos para as celebrações da Semana Santa. O dia para a confecção do Judas é a Sexta-feira da Paixão. Após a hora do almoço, podemos acompanhar a movimentação de homens, mulheres e adolescentes no transporte e elaboração de seus bonecos.
Dos muitos “Judas” espalhados pelo Bairro, acompanhamos a confecção de um boneco feito pela dirigente de uma das agremiações carnavalescas das Rocas. Este Judas foi construído a partir de sobras de alegorias do último carnaval e sua roupa foi elaborada de uma fantasia utilizada por um componente da escola de samba. Enquanto era preparado pela senhora e por seu filho adulto, o boneco era espancado e alvo de muitas brincadeiras, piadas e risos.
A confecção do Judas deu-se no barracão da escola de samba, sobre uma mesa, entre troféus e lembranças de outros carnavais. A senhora responsável pela confecção do Judas nos relatou como faz o boneco: falou que o boneco de Judas é costumeiramente feio, pois sendo Iscariotes o traidor de Jesus Cristo, o mesmo não pode ser representado com beleza. Na elaboração do boneco, ela utilizou: sapatos velhos, cinto, calça, camisa, algumas vezes, macacão. A cabeça do boneco é confeccionada com a manga de uma camisa. O rosto é pintado no tecido utilizando lápis piloto.
O boneco da Semana Santa de 2006 foi feito da seguinte forma:
1º Costurou a camisa na calça;
2º Encheu a roupa com espuma que sobrou das alegorias do último desfile do carnaval da cidade do Natal;
3º Costurou a cabeça na camisa e apoiou a mesma utilizando uma vara de madeira. O tecido para a cabeça foi escolhido numa cor próximo ao tom de pele;
4º Pintou a boca e o nariz, fez os olhos com pedaços de emborrachado e assim desenhou a face de Judas. O boneco estava pronto.
Finalizado, foi abraçado pelos seus criadores e em seguida, sentado numa cadeira dentro do muro de casa, aguardando a hora para a sua malhação. Um aspecto que deve ser acentuado sobre este boneco de Judas é a preocupação de seus criadores em montar um Judas bem vestido e ricamente adornado, sendo por eles considerado, o boneco mais “posudo” de todo o bairro e, por isso o último que deveria ser malhado.
Quando perguntamos sobre os motivos que conduziram àquela senhora e seu filho a fabricação do boneco os mesmos nos responderam que era uma “brincadeira” para divertir os meninos e jovens da rua, mas só após a malhação de todos os outros Judas das Rocas.
Em seguida, verificamos a presença de outro Judas na mesma rua. Havia sido confeccionado por uma antiga moradora do bairro O boneco feito por ela, reunia peças velhas de roupas, a cabeça de uma boneca e sapatos infantis. O mesmo já apresentava a cabeça solta, minutos após ter sido colocado sobre o capô de um fusca. O que indica que a malhação do Judas não é um rito com horário estabelecido e respeitado, na verdade, a partir do momento que se posiciona o Judas num poste ou árvore, os malhadores já causam os primeiros danos ao boneco, finalizando a dilaceração com a chegada da meia-noite.
Quando indagada sobre os motivos que a conduziram para elaborar um boneco de Judas, esta senhora nos afirmou que o faz há muito tempo e que é a forma que encontrou para representar Judas, o traidor de Jesus. Para ela, a malhação seria uma punição ao apóstolo pelo mesmo ter entregue o nazareno aos romanos.
O boneco do Judas representa simbolicamente todo indivíduo ou coisa pela qual a comunidade nutre desavenças, guarda rancores ou rivalidades. É comum em outros estados do Brasil, durante a Semana Santa, os bonecos assumirem feições de personalidades públicas e locais, sendo posteriormente rasgados e queimados
Na análise do ritual da malhação do Judas apontamos uma dicotomia entre as interpretações dadas para o sagrado e o profano. Enquanto grupos de malhadores do boneco nas Rocas explicitam a necessidade de liberar suas tensões e sinalizar seus desafetos tanto nos planos individual e coletivo, outros malhadores fazem o boneco e ritualizam sua imolação para aliviar suas angústias espirituais aplicando castigos ao boneco representando a figura do apóstolo traidor.
Os conflitos dentro da comunidade são nivelados dentro do rito, e esta é a função principal. A figura elaborada, surrada e queimada ao final da malhação tanto pode ser um sujeito ou uma coisa para a qual é transferida a aplicação das penas e castigos, imputando ao objeto estranho ao grupo a violência que pelo contrário voltaria para a comunidade.
Concluindo, o ritual é bom pra resolver os conflitos seja nas Rocas ou em Venha Ver e, ao mesmo tempo, importante para transmitir os valores sociais presentes no grupo.
Artigo no prelo.
domingo, 30 de setembro de 2007
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