Da mesma forma que persiste uma lacuna na produção historiográfica sobre o personagem histórico Judas Iscariotes, a antropologia social carece de estudos significativos sobre o rito da malhação do Judas. Assim, a dificuldade em coletar material historiográfico é também relativa aos registros etnográficos sobre a ‘queimação’, ‘malhação’ ou ‘brincadeira’ do ‘Judas’.
Estas limitações impedem de realizar um estudo comparativo sobre a evolução do rito e das motivações que conduziram os participantes da malhação ao longo dos mais de três séculos da presença desta ‘brincadeira’ em terras brasileiras.
Para nossos fins, as únicas referências sobre o rito da malhação-do-Judas foram elaboradas pelos folcloristas e pesquisadores da cultura popular. No Rio Grande do Norte, coube a Luís da Câmara Cascudo examinar as representações construídas em torno da figura do judeu (2001: 102) e sobre a queimação-do-Judas (1979: 417-419).
Sobre os motivos que conduzem as pessoas a queimar ou malhar o boneco do ‘Judas’, Cascudo buscou explicações nos estudos produzidos pelos antropólogos evolucionistas, como Sir James Frazer. Segundo o folclorista, o ‘Judas’ seria a personificação do mal e a existência deste rito teria suas origens no paganismo[1], com a introdução dos cultos agrários e as festas da colheita, ocasiões nas quais era queimado um boneco representando uma divindade da vegetação. Assim, através do fogo, haveria uma renovação da vida espiritual e a garantia de boas colheitas.
O folclorista Ernesto Veiga de Oliveira tratou do rito da malhação-do-Judas em Portugal (1974), também é chamado de ‘queima-do-Judas’. O rito acontece na noite ou madrugada do Sábado de Aleluia, quando os bonecos, sempre caracterizados com traços grosseiros e caricaturais, são amarrados em postes de cinco a seis metros de altura, aguardando a hora para serem queimados. O pesquisador aponta a presença de um testamento indicativo da animosidade vingativa do povo. Na sua análise, o rito faz parte dos festejos populares e os caracteriza apenas como mero divertimento. Para ele, as origens, razões e elementos constitutivos atuais diferem bastante da forma como foi concebido o rito. O ‘Judas’ pendurado no poste e depois queimado não representaria o apóstolo Iscariotes, fato que pode ser atestado pelas diferentes denominações que o boneco recebe em outros países europeus.
Para Veiga de Oliveira, a personagem queimada tem sua origem em cultos proto-históricos assimilados pelo cristianismo, que aponta na perspectiva anteriormente citada por Câmara Cascudo, indicação de que a personagem e a sua queima são originárias da celebração de outro fato. Veiga de Oliveira indica ainda a possibilidade de interpretar a queima-do-Judas como uma espécie de imolação simbólica, derivada dos antigos sacrifícios humanos. Uma morte ritual[2] que espera a personagem para que a mesma possa, com o seu sacrifício, renovar as forças da natureza.
Outro folclorista brasileiro, Ático Vilas-Boas da Mota dedicou-se à análise da queimação-do-Judas (1987). O seu método de coleta de informações para o trabalho consistiu no envio de questionários para diversas entidades, com o objetivo de esclarecer algumas questões em torno da malhação-do-Judas na região Nordeste. Segundo os dados levantados, a queimação-do-Judas ocorre no sábado da semana de Páscoa, o Sábado de Aleluia, e também pode ser chamada de ‘enforcamento’ ou ‘malhação’, dependendo do Estado nordestino.
Quanto às origens do ritual, informa que o rito tem raízes históricas, defendendo a tese de que a malhação-do-Judas se caracterizava quanto ‘resíduo folclórico’, nesse caso, uma sobrevivência dos autos de fé da Inquisição portuguesa. Ele defende ainda que a malhação do boneco fosse um vestígio da prática inquisitorial de queimar a representação de um condenado que tenha morrido antes da aplicação da pena. Esta punição era conhecida por ‘queimação em efígie’.
Segundo Mota, os bonecos são representações de personalidades públicas, moradores locais e políticos, ou seja, todo aquele que possa ser identificado como alguém mal-visto ou pouco quisto na comunidade. A elaboração e leitura de um testamento do ‘Judas’ antecedem a malhação do boneco, assinalando a função catártica para o grupo que o redige.
No campo das manifestações da cultura popular, o Rio Grande do Norte possui um grupo folclórico denominado Malhadores do Judas. Este grupo é originário do município de Major Sales (oeste do Estado), e desenvolve uma dança na qual o boneco do ‘Judas’ é figura central. Os homens dançam e cantam entoadas, ocultando os rostos com máscaras de tecido e trajando roupas semelhantes às encontradas pelos grupos de malhadores de ‘Judas’ do município de Venha Ver.
A análise dos dados permite concluir que a origem do rito aproxima-se mais da perspectiva apontada por Ático Vilas-Boas Mota. Na observação realizada no bairro das Rocas percebemos que os bonecos assumem diferentes personalidades, inclusive a do próprio apóstolo Judas Iscariotes.
[1] Christopher Crowley. Spirit of earth. Ancient belief systems in the modern world. London: Carlton books, 2000..
[2] René Girard. A violência e o sagrado. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1998. Cap. 1, 10.
Comunicação apresentada no XII Congresso brasileiro de Folclore em: 30 de agosto de 2006.
domingo, 30 de setembro de 2007
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